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sexta-feira, julho 18, 2003

18 de julho, dia de natal

A luminosidade dos primeiros momentos da alvorada inundou-lhe o rosto marcado pelas noites agrestes mal dormidas e pelas falhas de alimentação que são cada vez mais frequentes desde que a vida e a sociedade o empurraram para a incerteza de quem não tem família nem abrigo. Saiu do torpor em que o desânimo o lançara, levantou-se com dificuldade provocada pelas artroses cada vez mais vorazes e caminhou no seu andrajoso vestir, abandonando os cartões da sua cama por uma noite aos desígnios da ventania. Ergueu o rosto e caminhou na direcção dos luminosos raios matinais.

Por essa altura, na vidraça dum moderno e luxuoso apartamento da zona alta da cidade bateram os primeiros raios de um sol que muitos chamariam de Inverno, por hesitante na sua força mas nem por isso menos luminoso. Lá dentro sentado num cadeirão, não tivera coragem sequer de se deitar na confortável cama, um homem sofria, sofreu noite fora, um desgosto que lhe batera fundo na alma, que a vida tem destas coisas mesmo para quem parece viver desafogadamente. O homem desceu os poucos degraus da escada do elegante prédio em que reside e caminhou, caminhou na procura da luz da aurora que a noite lhe havia negado.

O contador do tempo, do tempo que passa, marcaria a mesma hora da manhã no seu alvor quando a ainda ontem donzela despertou do seu sentimento de honra perdida, na sua inocência mas também na volúpia dum momento traiçoeiro, a que se seguiu o abandono às suas próprias forças que lhe faltavam. Ainda ontem flor dos olhos de seus pais, enamorada de namorado a quem sua vida confiou. Hoje, embora o hoje só agora comece a dar os seus primeiros sinais, entregue a si própria, abandonada pela família repudiada pelo ente querido... A luminosidade da invernosa madrugada deu-lhe uma réstia de sentir e de querer e movimentou-se saindo da inacção em que o desespero da solidão a lançara.

Sempre lhe pareceu não haver grandes diferenças entre a noite e o dia a partir do momento em que a doença o atacou inexoravelmente e a dor passou a ser mais forte a cada dia que passa. Tinha consigo a família e entes queridos, até quando? Mas por muito que o quisessem ajudar a dor não se partilha, pelo menos a dor física. Hoje alguém levantou o estore da janela virada a nascente e um raio de luz poisou furtivamente sobre a imaculada colcha da cama. A dose matinal de morfina pareceu retirar-lhe completamente a dor. Pediu à enfermeira uma cadeira de rodas e alguém se prontificou a acompanhá-lo num passeio matinal. Há quanto tempo que tal não acontecia.

Por entre tijolos e outros materiais de construção, as madeiras já utilizadas e algumas ferramentas dispersas o engenheiro bioquímico imigrado em país de emigrantes olhou fixamente as mãos calejadas do violento trabalho de pedreiro e sentiu-se só. A mulher e a filha de tenra idade ficaram nas terras do longe onde até o alfabeto é diferente, aguardando a boa notícia de que havia encontrado trabalho digno e dignidade pessoal. Os parcos resultados que obteve em seis meses de árduo trabalho não criaram expectativas de um vida melhor tanto mais que nem aqui se conseguiu libertar das máfias sugadoras dos ganhos e da vida. Nesta manhã, no entanto, decidiu deixar por alguns momentos a obra e ir até à cidade.

Rosto e corpo angelicais, olhar de mel fixado nos longos espaços do infinito constituem, sem dúvida, uma imagem do amor, amor sentido mas ausente, logo amor sofrido. A jovem deixou o seu olhar percorrer lentamente espaços sem fim, muito para além do seu recatado quarto de dormir. Assim, passou a noite em atroz sofrimento que mais não é do que uma forte paixão por alguém que o espaço e o tempo teimam em manter afastado. A aurora aflorava já à janela de seu quarto quando, finalmente, sentiu alguma tranquilidade, esboçando um ténue sorriso nos belos lábios de carmim. Deixou os braços do sonho, ou do pesadelo?, em doce enleio vestiu roupa simples mas aconchegante como a época do ano recomenda e saiu, saiu aos primeiros raios de sol deste dia esplendoroso.

Anos e anos de estudo e aplicação numa ânsia imensa de saber, consumiram os mais belos tempos do seu viver na luta por um futuro melhor do que a vida dos seus progenitores que tantos esforços fizeram para o manter na universidade. Este jovem agora doutor, ou engenheiro, prepara-se para enfrentar o mundo do trabalho mas as dificuldades são tantas que o mantêm em permanente aflição, a responsabilidade de passar a contribuir para o rendimento familiar e, por que não, pensar em organizar a sua própria vivência. Arranjar emprego está difícil, isso já ele antes se tinha apercebido mas sempre esperava que as promessas dos políticos, mais cedo ou mais tarde, viessem a surtir efeito. Mas nada. O desânimo abateu-se sobre as suas interrogações tornando as noites cada vez mais negras. Agora com a claridade primeira da aurora resolve sair recolher um pouco de energia que pressente haver no ar.

Caminha na noite e sem rumo procurando que não reparem na sua tez escura, duma coloração que vem dos lados do oriente, este refugiado sem refúgio, que se viu obrigado a sair da sua terra e não encontrou neste país de brandos costumes o menor sinal de acolhimento. Olha furtivamente para as pessoas com quem se cruza, na expectativa, a cada momento, de sentir sobre si o dedo acusador, terrorista, árabe, que sei eu. Porque defende a paz teve que abandonar há muito a sua terra de nascimento refugiando-se num país tranquilo da Europa. Mas na verdade não encontrou refúgio e continua uma vida ilegal e sem destino porque transporta consigo o estigma do nascimento. Vive do fruto do pouco trabalho que lhe dão, que isto está mau mesmo para os que de cá são, o que nem sempre dá para comer uma refeição diária que este nome mereça. Depois é a sopa de caridade, são os restos dos contentores do lixo, são as sobras fora de prazo dos supermercados. No caminhar da noite se fez madrugar e a cor escura do seu rosto ficou mais visível com a luminosidade da aurora.

Que estranha força, que vontade subconsciente fez que estes homens e mulheres tão diferentes no ser e tão semelhantes no sentir e sofrimento caminhassem naquela manhã para o amplo largo da cidade, sem que tivessem comunicado entre si ou a qualquer acordo houvessem chegado. No jardim verdejante do largo da cidade muitas crianças brincam alegremente, sorrisos nos lábios alegria nos rostos. E quão diferentes elas são na sua origem e iguais no seu desejo de um futuro melhor. O João, filho da terra há mais de mil gerações; O Joel, negrinho filho de pais cabo-verdianos, já eles também nascidos em Portugal; A Joice que viera na barriga da mãe quando esta chegou do Brasil; A Tatiana filha das longínquas e gélidas estepes; E tantas outras crianças que aqui se encontram nesta manhã invernal mas luminosa.

Os recém-chegados da caminhada matinal vêem seus próprios rostos iluminados não tanto pela claridade da manhã, mas mais pela alegria das crianças em despreocupadas brincadeiras. O Futuro está em suas mãos, futuro solidário e amigo, futuro da verdadeira globalização e da sentida partilha. A Esperança veio aliviar os seus sofrimentos, veio mitigar a fome e a sede, veio dar novas forças e vontade de vencer as agruras da vida.

É Dia de Natal...

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