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quinta-feira, outubro 16, 2003

do fundo do baú da memória

Vou procurar e passar a escrito algumas das memórias que se encontram bem lá no fundo do baú onde guardamos recordações de situações vividas há muito ou que nos foram contadas pelos mais velhos. O pouco interesse que possam ter para os leitores dedicados pode bem ser compensado pelo afecto que pretendo colocar nesta partilha.

O rádio da marca Raymond

Ao fundo do corredor que durante algum tempo serviu de pista ao meu carrinho branco movido a corda de elástico havia uma porta, à esquerda, que dava para a casa de jantar, onde igualmente existia um recanto que poderíamos chamar “sala de estar” e uma janela para a rua mesmo ao nível do passeio, pois a nossa casa era o que então se chamava cave, hoje banida dos projectos de construção que reservam essa zona para garagens subterrâneas.

Nesse recanto da casa de jantar existia uma telefonia, entretenimento familiar, numa época em que a magia(?) da televisão ainda não tinha chegado a Portugal.

A telefonia, da marca Raymond, possuía uma enorme panóplia de comprimentos de onda, desde a onda longa à onda curta, passando pela onda média, somente em amplitude modulada e numa outra forma de recepção que se não conseguia perceber e, que á época, ninguém tinha explicação para tal.

Curiosamente, essa telefonia, com mais de cinquenta anos de existência, ainda funciona perfeitamente.



Em determinados dias da semana e sempre à mesma hora a família, bom... meu pai, minha mãe e minha avó e eu também porque fazia parte da família mas não percebia o ritual, juntava-se à volta da telefonia com um ouvido bem junto do altifalante para ouvir um homem falar. A voz do homem nem sempre era a mesma e tinha um sotaque diferente do nosso.

O silêncio era imperioso e sempre que alguém tentava dizer algo, era sempre eu, meu pai emitia um imperioso “ssshhheee olhem as escutas!”

Poucos anos mais tarde vim a perceber todo aquele ritual. Meu pai que eu vira sempre a trabalhar trabalhar trabalhar na sua profissão de empregado de balcão ou a servir à mesa ao Domingo num restaurante para ganhar mais uns escudos, nunca ligado a preocupações políticas, não perdia ouvir as emissões em português na onda curta da BBC e da Rádio Moscovo.

Estávamos em plena época da ditadura salazarista, defendida por uma repressão feroz e embora a família não resistisse a ouvir emissões de rádio contra o regime, temiam ser detectados por um pide à época muito activos ou por um carro de escutas rádio que se dizia detectarem qunado alguém estava a ouvir emissões consideradas pelo regime clandestinas.

Ainda hoje consigo sintonizar no complicado mostrador a frequência da BBC. A da Rádio Moscovo está calada há muitos anos. O rádio Raymond ainda cumpre a sua função de telefonia.

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