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domingo, outubro 19, 2003

do fundo do baú da memória

Vou procurar e passar a escrito algumas das memórias que se encontram bem lá no fundo do baú onde guardamos recordações de situações vividas há muito ou que nos foram contadas pelos mais velhos. O pouco interesse que possam ter para os leitores dedicados pode bem ser compensado pelo afecto que pretendo colocar nesta partilha.

A cicatriz

A terra onde nasci era farta em ruas com designações relacionadas com a Implantação da República, eventualmente, em resultado dos seus habitantes terem participado activamente no apoio popular ao derrube da Monarquia em Portugal. Da mesma forma, participaram nos diversos actos revolucionários que se verificaram durante a I República, especialmente, integrando as tropas revoltosas que vindas de Mafra em direcção a Lisboa.

Por outro lado, pelo facto de lá se situar uma importante estação de Caminho de Ferro, teve sempre a tradição revolucionária dos grandes aglomerados de ferroviários. Fruto de tal situação era, igualmente, terra de pides e bufos, que se mantinham sempre em escuta e prontos a serem delatores de uma situação menos de acordo com os objectivos do regime.

O meu pai sempre me prevenia, era eu ainda bem pequenino, nada de conversas ao pé “daquele ali” é da Pide e pode levar-nos preso. A verdade é que na vida corrente do dia-a-dia de trabalho nunca me apercebi que o meu pai fosse mais do que isso mesmo, um trabalhador de comércio esforçado para levar os meios de subsistência para nossa casa.

Somente, alguns anos mais tarde me apercebi de algum brilho no olhar por razões políticas, aquando da campanha a favor da candidatura de Humberto Delgado. Propaganda, panfletos trazidos para casa em segredo, votos.

Também nasci e morei alguns anos na chamada Avenida da República. Avenida porque era uma rua, a única da Amadora à época, constituída por duas faixas de rodagem e um amplo passeio central. Ligava a rua principal, eixo dorsal da povoação, à estação de Caminhos de Ferro.

Nesse passeio central brinquei a minha meninice, conheci os meus primeiros amigos, queimei o primeiro fogo nos festejos de Santo António, esfarrapei o meu rosto contra uma árvores numa correria desenfreada. Curioso... ainda hoje tenho uma pequena marca no rosto, cinquenta anos passados.

Esta pequena cicatriz não ficou guardada no baú mas a sua origem sim. Essa memória foi hoje libertada.

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