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quinta-feira, dezembro 25, 2003

dia de natal

Com a leitura dos textos que pareciam emergir naturalmente do papel, a espiral transformava-se num círculo de quereres e sentires, cada vez mais próximo das certezas sobre a razão dos meus recorrentes sonhos.


Um qualquer dia do ano, foi Dia de Natal

Noite mal dormida, agitada, não devido a qualquer pesadelo que me incomodasse o sono que desejava retemperador, mas a um sonho recorrente que muitas noites interrompera o meu descanso.

Sonho na leveza da imaginação, ter capacidade para percorrer espaços sem fim, evitar obstáculos, enfrentar sem cansaço nem desânimo distâncias enormes que me conduzem ao próprio sonho. Circulo vicioso em que tudo de novo recomeça.

Nesta noite aconteceu uma ligeira diferença ao sonho já por mim conhecido de tão habitual. Uma bela mulher, tocada pela mesma magia, cruzou-se comigo uma só vez, o suficiente para fixar as belas linhas de seu rosto para sempre.

Esta diferente sucessão de acontecimentos sonhados, lançaram-me em profunda inquietação somente atenuada quando no frio da manhã recém chegada assomei à varanda da minha casa, situada numa ligeira elevação de terreno sobranceiro ao mar, amplo mar, que se espraia num longo areal que chega até ao local onde se encontra implantada uma fileira de casas de praia.

Deixei-me ser completamente absorvido pela paisagem, pela profundeza do mar azul. Quedo e ledo, como hipnotizado em transe profundo, deixei minha imaginação vaguear pelo tempo e pelo espaço, sentindo-me, cada vez mais, tranquilo, sem que, contudo, conseguisse varrer da minha retina a imagem da mulher sonhada na noite anterior.

Num momento, recordava as belas linhas do rosto maravilhoso, logo depois, o voar pelas terras do sem-fim, a seguir, a imagem de uma mulher a caminhar airosamente pelas areias da praia, que mais do que sonho me parecia realidade.

O meu olhar continuava fixo no mar. Quem me observasse nesse fugaz momento, cabelos brancos, compridos, desgrenhados, barba de igual alvura, aparada como pêra, achar-me-ia, provavelmente, louco, mas no mínimo, estranho.

Minha mente, continuava agitada, por um sem número de imagens, de sentido oposto, logo de seguida convergentes, cuja origem eu não conseguia definir. Dos sonhos? De olhar o horizonte onde o mar se junta ao céu? Duma mulher, bela mulher, deslizando nas doiradas areias da praia? As imagens sobrepunham-se, tornando-se nítidas e, logo depois, desfocadas, mas continuavam perenes no meu cérebro, ou no meu coração?, linhas cada vez mais bem definidas de um belo rosto de mulher.

Noite mais dolorosa que a anterior, pela certeza de sentir a razão de um sonho, que tendo voltado a atormentar o meu repouso, agora, algo de muito real, mas intangível, que eu desejava ardentemente rever uma vez mais.

Mais fria está esta nova manhã. Mas o apelo sentido era tão forte que de novo recebi o nascer do Sol na varanda da minha casa, voltada ao mar. Agora, já não olhava o mar infinito e misterioso e tão azul. Meus olhos esperavam ansiosos ver surgir na praia o vulto da mulher que o sonho me prometera.

Não passou muito tempo. Uma mulher esbelta e de suave caminhar vinha lá dos lados das casas de madeira que bordejam as areias da praia, dirigindo-se na direcção em que me encontrava.

Na zona frontal à minha casa entrou na água do mar e de lá olhou-me, procurando meus olhos. A distância era grande, mas a intensidade do olhar ofuscou-me de tal forma a visão que, subitamente, virei as costas e entrei em casa.

Embrenhado nos meus pensamentos, as imagens dos sonhos a cruzarem-se com as da realidade, não dei pelo tempo passar. Tempo que deixou de fazer sentido pois a minha vivência ficou totalmente dependente do caminhar do Sol, cujo ocaso muito desejava.

Quando dei por mim, já o Sol estava se pondo com magnífica luminosidade, em tons de amarelo doirado como nunca antes tinha visto. Um sentimento estranho se apossou de mim deixando-me na certeza de que algo muito importante iria acontecer. Algo que há muitos anos esperava e desejava.

Bateram à porta. Já sabia quem seria. Quando abri a porta, aquela bela mulher envergando um vestido solto que o vento fazia voar, sorri suavemente. Pareceu ficar estonteada quando afirmei:
_Eu sabia que vinha.

Questionou-me docemente:
_ Sabia? Como sabia disso?
_ Sim, eu senti quando te vi a primeira vez.

Disse-lhe calmamente procurando, ao mesmo tempo, tranquilizá-la.
_ Ah, hoje pela manhã não? Na praia?

Sorri-lhe, uma vez mais enquanto deixei transparecer o meu sentir de há longo tempo recorrente nos meus sonhos:
_ Hoje? _ Claro que não....Há muito tempo atrás.

Vendo-a algo perturbada, ofereci-lhe um vinho que aceitou. Quando me aproximei apercebi-me que o seu estado de espírito se reforçava, ficando mais confiante. Pude apreciar toda a sensibilidade de tão interessante mulher.

Só então reparei num quadro que trazia apertado a seu corpo.
_ Fiz este quadro hoje, geralmente levo dias pintando, mas esse foi tão rápido e misterioso, eu não o programei, e é você... Resolvi te trazer. As imagens não são tão nítidas, nunca faço imagens muito nítidas, talvez por achar que a vida também não seja assim..
_ Está perfeito, eu vejo o mar assim.... Obrigado.

Ficámos conversando horas sem fim. O tempo fugiu entre os dedos como acontece com a areia da praia aqui tão perto.

O meu olhar procurava-a com avidez, tentando encontrar todos os elos existentes entre esta bela mulher e as linhas perfeitas do rosto que desde há muito sempre me acompanha nos sonhos.

Senti-a assustada quando a olhava mais profundamente, mas era irresistível fazê-lo.
_ Tenho que ir. Já é tarde.

Ofereci-me para a acompanhar a casa, mas não aceitou, justificando-se com a necessidade imperiosa de ficar só.

Durante longos dias deixei de ver na praia a bela mulher com seu vestido esvoaçante, muito embora, ao nascer da manhã sempre permanecesse na varanda olhando o amplo mar na espera de um encantamento.

Depois desalentado, temente de que tudo não tivesse passado de mais um sonho, encerrei-me em casa, nem sequer abrindo a porta quando batiam. A coragem de enfrentar a realidade esvaiu-se como o fumo dos cigarros que fumava sem sentido.

Passaram dias e meses, o sonho que durante tanto tempo me acompanhou também ele se afastou, seguindo as pisadas da bela mulher da praia. A minha tranquilidade, contudo, não mais regressou.

Meses passados, tantos que lhe perdi a conta, o sonho regressou numa noite mais agitada do que nunca, num chamamento irrecusável para a vida. Levantei-me cedo, percorri a distância que vai da minha casa à fileira das casas implantadas junto à praia, deixando os pés entrarem na areia, recebendo no rosto a fria brisa matinal.

Junto à sua casa, bati à porta. Tão doce mulher recebeu-me com um sorriso suave e terno:
_ Eu sabia que vinhas.

Correspondi a sua ternura, sorri e entrei.

Na sala um cavalete com um quadro praticamente terminado. Muito semelhante ao que meses atrás me havia oferecido. Só faltava o homem de barba e cabelo branco na varanda.

Nesse dia, um qualquer dia do ano, foi Dia de Natal.


Completava-se um ciclo de 20 anos, ou seria de 30? ou de 40? Os contos "Espiral" e "Um qualquer dia do ano, foi Dia de Natal" decidiram que na sua caminhada para o editor jamais se separariam.

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