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quarta-feira, dezembro 24, 2003

espiral do pensamento

Quando abri a "Carta que veio de Longe" fui encantado com um suave odor de rosas vermelhas, rosas de Vale de Rosal, que emanava das três folhas de papel contidas na carta.

A surpresa foi maior quando verifiquei que o texto que vinha escrito de um dos lados das folhas de papel se desvanecia tanto mais, quanto o odor das rosas se libertava.

Procurei preservar as palavras que, cada vez menos eram visíveis, transcrevendo-as para aqui:


Espiral

Ainda fazia o frio da manhã recém chegada. Desci as escadas da minha casa que davam direto na areia do mar, não usava casaco, pois sabia que ao voltar estaria quente. Ao iniciar minha caminhada na praia meus primeiros passos são lentos e é nesse momento que eu me sinto abastecer de toda essa natureza generosa, ela penetra em mim como fonte geradora de vida....O ciclo da vida é mesmo sempre assim, mas já estava a dar passos largos e fortes, corria.

Tive uma sensação de alegria, de paz, continuei ainda muito tempo a correr na areia da praia, quando senti vontade de sentar-me um pouco. Queria admirar o mar, escutar seus segredos, quem sabe ouvir os meus , aqueles que nem mesmo eu sei...Mergulhar em mim.

Deitei-me e não sei quando tempo permaneci ali, devo ter adormecido. O sol forte no rosto me fez voltar. Continuei meu caminho, que me parecia mais interessante que de costume. Senti vontade de voltar por um caminho diferente, eu terminaria por uma estrada estreita, paralela ao mar, que ficava mais ao alto. Subi, ali ficavam algumas casas, exóticas e misteriosas.

No alto de uma varanda alguém me chamou a atenção. Como eu andava devagar neste momento, aos poucos pude perceber aqueles contornos. Era forte, alto, com um olhar misterioso e fixo. Estava quieto, tão quieto, olhava firmemente o mar como se estivesse em transe, completamente envolvido pela paisagem. Quis que ele me olhasse e pensei: ao passar mais perto, talvez quebre sua concentração, quem sabe posso ver os seus olhos. Senti-me atraída por ele. Fui me aproximando, mas nada aconteceu , ele permanecia quieto, olhar fixo para o mar... O que aquele homem olhava, pensava, sentia? Senti-me ainda mais atraída e fascinada. Seu ar de mistério envolvia-me. Continuei meu caminho de volta.

Ao chegar em casa, muitas lembranças desta manhã ficaram se repetindo como se fossem trechos de filmes, e aquele homem misterioso.. Porque não conseguia parar de pensar naquela cena? Descobri-me com uma curiosidade enorme de olhar os seus olhos...Quem seria ele?

Meu dia parecia normal como todos os outros, exceto pelos meus pensamentos que voavam, estavam no mar, estavam naquela varanda. Ainda não podia compreender porque a presença daquele homem havia me impressionado tanto, mas a verdade é que não consegui me concentrar em outras atividades neste dia. Sou uma artista plástica. À manhã e ao entardecer sempre me davam muita inspiração para iniciar um quadro, me aproximei do meu cavalete e fiquei olhando a tela branca, tudo parecia-me envolto em mistério. Não sabia ao certo o que queria... Ou sabia? De repente comecei a desenhar o mar...A varanda, e fiz o esboço daquela varanda, daquele homem, surpreendi-me com a rapidez dos pincéis, com a rapidez da minha mente.

Uma nova manhã. Desta vez resolvi sair mais cedo, ainda mais frio. Olhava bem à frente e pensava...Eu não vou subir aquele caminho, eu não vou encontrar aquela varanda, eu não vou olhar aqueles olhos. Lutava comigo, com o que sentia, com o meu desejo. Em frente à casa dele, não resisti, parei, virei-me e lá estava ele, do mesmo jeito, com o mesmo olhar.

Entrei no mar, nunca fazia isso, e de lá olhei seus olhos, que mesmo apesar da distância pude percebê-los, ele olhou em minha direção, aquele olhar me aqueceu. Em seguida ele virou as costas e entrou. Quis chamá-lo, ir atrás dele. Lutei contra isso. Senti frio, resolvi voltar correndo à minha casa. Tomei um banho e um chocolate bem quente, olhei meu cavalete e a minha Tela.. Peguei meus pincéis e aquele esboço passou a ter contornos, um rosto, um olhar. Levo dias pintando meus quadros ou mesmo escrevendo minhas histórias, mas, naquele momento tudo fluía muito facilmente. Passei o resto do dia a trabalhar nele e ao final da tarde estava pronto.

Eram umas seis da tarde, o sol estava se pondo, aquele amarelo ouro espalhado pelo ar, a tonalidade das casas, das árvores ganhavam um toque especial. ..Eu estava me sentindo feliz. Olhei aquela paisagem pela janela, olhei para a Tela, olhei mais uma vez...Peguei o quadro, tirei do meu cavalete e sai com ele nas mãos...Eu estava com um vestido solto e o vento fazia ele voar, tinha medo que se encostasse ao quadro, eu travava uma batalha com o vestido, com o vento, com minhas emoções ,comigo. Não parei de andar até chegar em frente á casa dele, respirei fundo e bati à porta.....
Não demorou nada, não deu tempo para que eu sentisse medo ou vontade de desistir. Ele abriu e sorriu, um sorriso suave e disse:
_ Eu sabia que vinha.

Aquilo me deixou tonta, como ele sabia que eu vinha? Por que ele me dizia isso de forma calma e aliviada?
_ Sabia? Como sabia disso?
_ Sim, eu senti quando te vi a primeira vez. Ele continuava falando calmamente.
_ Ah, hoje pela manhã não? Na praia?
_ Hoje? Sorriu mais uma vez...._ Claro que não....Há muito tempo atrás. Estava ficando tão perturbada que resolvi não perguntar mais nada. Talvez parecesse boba.

Ele me perguntou se queria um vinho, disse que sim e quando ele se aproximou com as taças na mãos, percebi que o quadro ainda estava preso comigo, me dando apoio, me amparando...Senti-me mesmo boba, insegura e assustada.. Resolvi mudar aquilo tudo, afinal eu me sentia uma mulher forte, corajosa, que arriscava...Peguei a taça, tomei um gole, aquilo me aqueceu.

Fiz este quadro hoje, geralmente levo dias pintando, mas esse foi tão rápido e misterioso, eu não o programei, e é você...Resolvi te trazer. As imagens não são tão nítidas, nunca faço imagens muito nítidas, talvez por achar que a vida também não seja assim..
_ Está perfeito, eu vejo o mar assim.... Obrigado.

Conversamos algumas horas, não sei ao certo quantas, mas vez por outra, sentia alguma coisa diferente em seu olhar, ficava meio perturbada e não me sentia à vontade de questionar, aquele encontro me dava uma sensação boa, eu queria apenas sentir. Acho que tomamos toda a garrafa de vinho, e o que aqueles olhos queriam me dizer? Será que eu também tinha algo a dizer? Era uma emoção diferente, gostava do que estava sentindo.

Quando vi que poderíamos revelar algo, me assustei....
_ Tenho que ir. Já é tarde.
_ Posso te acompanhar até a sua casa? Ele disse.
_Não, tenho que ficar um pouco só agora. Obrigada. Alguma coisa me diz que tenho que seguir sozinha.

Saí de lá, com uma vontade enorme de voltar e perguntar: quem é você? Mas eu sabia que ainda não era a hora. Estava tão excitada com tudo isso que demorei muito tempo a dormir, apesar do vinho.

Tive medo de ir ao encontro dele no outro dia, e no outro e no outro, portanto alguns dias se passaram sem que eu o visse novamente. Mas ao levantar, quis ir correndo direto até ele, eu o perguntaria tudo, eu diria o que sinto, iríamos desvendar esse mistério todo que nos envolvia. Fiz exatamente isso, saí correndo, correndo, só parei diante da sua porta. E bati. Bati. Bati. Mas, ele não abriu e não me sorriu com aquele sorriso suave. Sentia uma dor enorme, difícil de explicar, afinal não sabia ao certo o que se passava nem o que tinha perdido. Chorei. E pensei que eu deveria tê-lo procurado, pensei em coisas que geralmente costumava falar para as pessoas: nunca fuja do seu destino! E eu tinha fugido do meu, por quê? Isso me deixou profundamente triste e decepcionada comigo mesma.

Continuei com meus passeios e em frente à casa dele eu parava e olhava para a varanda, que não tinha mais ninguém. Talvez tenha feito isso por dias e dias, meses e meses seguidos, não sei.

Hoje, senti vontade de fazer um quadro diferente, levantei cedo, não quis correr na praia, resolvi que ficaria em casa, que começaria naquele mesmo instante um quadro que se esboçava em mim com uma força tão grande como aquele que fiz, de um mar, de uma varanda, de um homem que não sei quem é.

Meu pincel deslizava, formas foram surgindo, ainda era a mesma varanda. Como seria possível? Pensei. Mas não tinha ninguém lá...Apenas uma varanda...
Estava absolutamente absorvida com o meu trabalho, demorei a perceber, mas alguém batia em minha porta. . Abri. Era ele....

Mais uma vez ele sorriu suavemente.
Retribui o sorriso e disse:
_ Eu Sabia que vinha.


Trata-se de um conto. Como tal assinado por alguém que o futuro se iluminará como escritora: Liliana Miranda.


Verifiquei então, surpresa das surpresas, que enquanto este maravilhoso texto se desvanecia de um lado das folhas de papel, um outro texto se tornava cada vez mais visível no outro lado das folhas.


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