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quinta-feira, fevereiro 19, 2004

elmano sadino

Apontamentos dos quereres e sentires do poeta de Setúbal, Manuel Maria de Barbosa du Bocage, na procura de uma verdade impossível de encontrar, o rumo da sua vida. Transcrição de sonetos e de poesias eróticas, burlescas e satíricas


Bocage já não chegou ao Natal

Tanta vida vivida, tantos amores e desamores, tantos ódios e tanta fama e só passaram quarenta anos de vida e mais de vinte de vadiagem, de noitadas e de genebra. Passou vida no Bairro Alto, na Lisboa boémia e no Rio de janeiro, na Rua das Violas; viajou por Surrate e pelos pangaios de Cantão, lá no oriente longínquo e regressou mais pobre do que nunca à poncheira do Botequim das Parras.

Muito fumo, muitas correrias, subidas e descidas pelas calçadas de Lisboa, Bocage está um farrapo, com um aneurisma declarado que o atira para uma cama. Visitado e valido pelos amigos e animado pela irmã, ninguém mais lhe resta, enquanto a doença o consome tornando mais transparentes os seus olhos muito azuis.

Bocage verseja como nunca. Um fogo, intenso fogo, o desgasta internamente mas lhe dá inspiração e forças para improvisar como nunca. Bocage já lhe custa endireitar-se na cama, mas a par com a visita dos amigos, também o visitam aqueles com quem se digladiou tempos sem fim. O respeitam e prevêem o breve desenlace.

Por lá aparecem o Policarpo, da Rua Nova da Rainha e até o Curvo Semedo e o Visconde de Laborim. Até o próprio Padre José Agostinho de Macedo não faltou. No meio de toda esta emoção e comoção se arrastou Bocage nos últimos meses de vida.

Numa dessas visitas o pintor Henrique José da Silva, de vontade própria ou por encomenda, fez-lhe o retrato. Olhos cavados e ardentes, uma mecha de cabelo a cair-lhe para a testa, magro como um cavaco.



Bocage sentia-se finar...

Meu ser evaporei na lida insana...
Já Bocage não sou...
À cova escura meu estro vai parar, desfeito em vento...


Bocage não chegou ao Natal. Expirou em 21 de Dezembro de 1805 e foi sepultado na Igreja das Mercês, mesmo junto à sua porta.


Soneto 80

Meu ser evaporei na lida insana
Do tropel das paixões que me arrastava,
Ah! Cego eu cria, ah! Mísero eu sonhava
Em mim, quase imortal, a essência humana!

De que inúmeros sóis a mente ufana
A existência falaz me não doirava!
Mas eis sucumbe a Natureza escrava
Ao mal, que a vida em sua origem dana.

Prazeres, sócios meus e meus tiranos,
Esta alma, que sedenta em si não coube,
No abismo vos sumiu dos desenganos.

Deus... ó Deus! Quando a morte à luz me roube,
Ganhe um momento o que perderam anos,
Saiba morrer o que viver não soube!



Bibliografia consultada
Bocage, Sonetos – Livraria Clássica Editora – Lisboa, 1961
Bocage, Poesias Eróticas, Burlescas e Satíricas – Editora Escriba – S. Paulo, 1969

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