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quarta-feira, agosto 10, 2005

sou o gato fidalgo, para os humanos o tati

Gostava de me apresentar a todos vós, amigos e leitores do que o meu humano amigo vai escrevendo e publicando, algo que lhe ocupa muito tempo mas que, confesso, nunca me prejudicou no afecto que sempre me concede.

Eu sou o Gato Fidalgo mas os meus “donos” humanos chamam-me carinhosamente Tati. Claro que, como todos os restantes gatos em todo o Universo, tenho um terceiro nome, mas esse, perdoem-me, é secreto. Sou nascido em Valle do Rosal, filho da Gata Balãozinho e irmão da Gata Luana prematuramente falecida. Tenho uma sobrinha que aparece muitas vezes nas redondezas de onde eu vivo mas que nunca fica por cá muito tempo, é a Gata Ninja. Vivi alguns anos em plena liberdade pois, como todos os elementos da minha família sou um tanto avesso a estar “prisioneiro” num lar humano.

Um dia numa cena de “marcação de território” magoei-me seriamente. Aninhei-me num canto onde sabia vir a ser encontrado pelos humanos e assim aconteceu. Lavaram-me para um hospital em hora tardia e por lá fiquei entregue a cuidados médicos. Não gostei muito da forma como me trataram e ainda hoje me lembro do que sofri.

Nunca mais gostei de ver batas brancas junto a mim e reajo mal a essa situação, chegando a ficar irritado e pronto a arranhar quem de mim se aproxime. Levaram-me a outra médica que tinha artes de me pegar como a minha mão me fazia em pequenino. Tratou-me e passei a sentir-me muito bem. Fiz mesmo amizade com os meus protectores. Escolhi-os para meus donos. E com carinho pagava o carinho que me davam.

Tinha comida a tempo, carinho e local cómodo para dormir. Deixei de fazer as minhas necessidades fisiológicas pelos canteiros e passei a ter um local com pedrinhas onde resolvia a situação. Respondia aos bons tratos com muito “rom-rom” e sentia bem o que isso agradava aos meus “donos”.

Sentia falta de saltar pelos telhados, de ir à caça, de passar as noites em claro brincando com a minha sombra que a Lua projectava no território. Por vezes ficava com muita nostalgia... Lançava longos miados, olhava a rua pelas frestas das janelas.

Os dias foram passando nesse desesperado desejo de liberdade. Fui-me apercebendo que outros gatos apareceram a ocupar o território que fora meu por herança de minha mãe que julgo saber bem mas que está há muito ausente e, muito em especial, de minha irmã prematuramente retirada do mundo dos vivos por acidente ou ataque de um predador.

Se me olhassem com atenção os meus “donos” ter-se-iam apercebido que as remelas que se acumulavam no canto dos meus olhos eram fruto não de uma inflamação nos sacos lacrimais mas antes resultante das lágrimas que rolavam até aos bigodes de tanto querer ir defender o meu espaço.

Cuidam de mim com muito carinho, tratam das minhas maleitas, sei quanto gostam de mim mas não entendem a necessidade que sinto de saltar de quintal em quintal, de dormir na sombra de um arbusto, de vaguear desde o pôr-do-sol até ao raiar da aurora.

Um dia, sem encontrar explicação para isso, o meu “dono” fez-me um carinho mais prolongado e saiu levando consigo um saco de mão com o qual nunca o havia visto antes. Senti que algo fora do comum se estava a passar com o meu “dono”. Tanto mais que nessa noite não o encontrei na cama onde normalmente me ia aninhar num sono tranquilo.

A minha dona regressou a casa algum tempo depois e pareceu-me nervosa. Nessa noite e nas seguintes senti que o meu “dono” atravessava um período difícil da sua vida. Senti que o poderia perder. Confesso que recorri aos meus antepassados egípcios pondo-me à sua disposição para morrer em lugar do meu “dono”.

Passei dias de grande apreensão não sabendo concretamente o que estava a acontecer. Passado algum tempo que me pareceu uma eternidade o meu “dono” regressou. Aproximei-me dele que me acarinhou como sempre e a quem eu, roçando a minha cabeça em suas pernas, procurei dar-lhe a mensagem que estaria com ele para os bons e os maus momentos.

Curiosamente, deixei de me preocupar com a necessidade que senti de ir cuidar do meu território, mais preocupado com o bem estar do meu “dono”. O meu “dono” que regressara um pouco debilitado melhorava a olhos vistos.

Eu por meu lado comecei a sentir-me muito doente. Fiquei tranquilo pois sabia que a minha doença havia de servir para salvar a vida do meu “dono”.

Senti momentos de muito mau estar físico. Tive situações de grande dificuldade de urinar. Os meus “donos” não tardaram a levar-me a um local onde me pareceu que as pessoas de lá sabiam o que fazer para aliviar o meu sofrimento. Embora o ambiente fosse tranquilo, sentia uma revolta muito grande. O meu espírito felino veio à superfície do meu pensar.

Tornei-me agressivo embora sentisse que me estavam a fazer bem. Está no nosso código genético sermos assim. Quando regressava à tranquilidade do meu “lugar”, a casa dos meus “donos” mudava completamente a minha atitude. Tentava aliviar a preocupação que sentia nos meus “donos” com “marradinhas” ternurentas.

Vivi longo tempo, talvez alguns anos na medida de tempo felina, em idas frequentes fazer um tratamento que por vezes se prolongava por mais tempo e me mantinha separado dos meus “donos”. Houve mesmo uma altura em que pensei já ter esgotado os sete fôlegos dos gatos. Senti-me muito mal e vislumbrei uma preocupação agravada em quem me rodeava.

Durante todo este tempo não deixava de observar o meu “dono”. Parecia-me bem. O que havia pedido à minha deusa egípcia que me sacrificasse a vida se com isso conseguisse salvar o meu dono parecia-me ter tido resultados muito positivos. São desígnios inexplicáveis da vivência felina.

Um dia pareceu-me que o sol brilhava forte no olhar dos meus “donos”. Levaram-me nesse dia, uma vez mais, à médica, já descobrira por que razão essa pessoa entendia dos meus sofreres e com tratamentos adequados fora melhorando o meu bem estar. Nesse dia, todos estavam bem dispostos, e eu regressei a casa sem um colar que me acompanhara durante longos tempos e que tanto me incomodava.

Comi mais à-vontade e bebi água sem o incómodo do colar. Percorri a casa como antigamente e fui deitar-me na cama dos meus “donos”. Os outros felinos da casa acarinharam-me, especialmente, aquela gatita negra que me encheu de beijinhos. Senti-me mais forte e com uma vontade grande de viver.

Sinto-me, de novo, forte. Acarinhado pelos meus “donos” e pelos meus companheiros gatos tenho uma vida tranquila. Comida a horas, água nos locais onde mais aprecio ir bebê-la. Com este novo fôlego voltou a vontade de ir defender o território que pouco a pouco outros gatos estão a ocupar. Na primeira oportunidade fugi de casa.

Saltei muros, atravessei quintais. Envolvi-me em tremenda pancadaria com os outros gatos da rua. Senti a aflição dos meus “donos” que me chamavam para que regressasse, mas eu tinha desígnios a cumprir. Finji sempre não ouvir os seus apelos.

Pelo menos de duas luas apercebi-me a sua passagem. Continuei a patrulhar o meu território. A fazer as marcações do terreno que me são devidas. Encontrei a minha sobrinha, a Gata Ninja, que se queixou também ela de se sentir prejudicada pelos invasores.

Os chamamentos dos meus “donos” eram cada vez mais pungentes e dramáticos. Não sabia até onde lhes conseguiria resistir. A amizade e a cumplicidade que estabelecemos no decorrer dos tempos eram mais fortes que o meu desejo de independência.

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