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quarta-feira, dezembro 21, 2005

os duzentos anos da morte de bocage

Bocage já não chegou ao Natal

Bocage agarrava-se à vida que sentia fugir-lhe já desenganado pelo seu médico assistente, o cirurgião Manuel Joaquim de Oliveira. Recorreu a todos que o seu imaginário havia criado, inclusive ao ferrador do Rato, famoso e experimentado curandeiro.

Tanta vida vivida, tantos amores e desamores, tantos ódios e tanta fama e só haviam passado quarenta anos de vida e mais de vinte de vadiagem, de noitadas e de genebra. Passou vida no Bairro Alto, na Lisboa boémia e no Rio de janeiro, na Rua das Violas; viajou por Surrate e pelos pangaios de Cantão, lá no oriente longínquo e regressou mais pobre do que nunca à poncheira do Botequim das Parras.

Muito fumo, muitas correrias, subidas e descidas pelas calçadas de Lisboa, Bocage está um farrapo, com um aneurisma declarado que o atira para uma cama. Visitado e valido pelos amigos e animado pela irmã, ninguém mais lhe resta, enquanto a doença o consome tornando mais transparentes os seus olhos muito azuis.

Bocage verseja como nunca. Um fogo, intenso fogo, o desgasta internamente mas lhe dá inspiração e forças para improvisar como nunca. Bocage já lhe custa endireitar-se na cama, mas a par com a visita dos amigos, também o visitam aqueles com quem se digladiou tempos sem fim. O respeitam e prevêem o breve desenlace.

Por lá aparecem o Policarpo, da Rua Nova da Rainha e até o Curvo Semedo e o Visconde de Laborim. Até o próprio Padre José Agostinho de Macedo não faltou. Este último mais interessado no seu espólio do que na sua saúde. Não perdoava Bocage ser famoso enquanto ele era pouco mais do que um poeta conhecido. No meio de toda esta emoção e comoção se arrastou Bocage nos últimos meses de vida.

Numa dessas visitas o pintor Henrique José da Silva, de vontade própria ou por encomenda, fez-lhe o retrato. Olhos cavados e ardentes, uma mecha de cabelo a cair-lhe para a testa, magro como um cavaco.

Bocage sentia-se finar...

Meu ser evaporei na lida insana...
Já Bocage não sou...
À cova escura meu estro vai parar, desfeito em vento...


Bocage não chegou ao Natal. Expirou em 21 de Dezembro de 1805 e foi sepultado na Igreja das Mercês, mesmo junto à sua porta.

E finou-se no Anno da Desgraça de 1805. No dia 21 de Dezembro... Não conseguiu chegar ao Natal.

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