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quarta-feira, dezembro 07, 2005

tradição e cultura popular

A tradição resulta da memória colectiva de um Povo, autêntico património invisível que se transmite entre gerações e representa o mais elevado expoente da cultura popular. Aqui se deseja dar conta desse repositório


Rezas e Benzeduras

À conversa com a Dona Inês de Jesus no Largo da Igreja, no coração da aldeia alentejana de Peroguarda, era impossível não se falar do Professor Joaquim Roque, filho dilecto da terra, saudosamente recordado e que deu lugar a toponímia no largo em que viveu.



A casa onde habitou, de piso térreo bem ao estilo alentejano, forma ângulo no largo hoje designado Largo Professor Joaquim Roque, donde nasce a Rua Jean Marie Jacometi, figura de destaque nas recolhas etnográficas do Portugal profundo e que muito conviveu com o Professor Joaquim Roque.



Voltando à conversa com a Dona Inês de Jesus, que mantém no seu coração a mágoa do espólio do Professor estar a ser cuidado pelo Município de Portel e não pelo de Ferreira de onde Peroguarda é Freguesia, é de grande reconhecimento a forma como a ele se refere.

“Rezas e benzeduras Populares”, obra datada de 1946, foi um dos trabalhos mais emblemáticos do professor Joaquim Roque, a que o sábio brasileiro Mestre Basílio de Magalhães se refere com desvelo e que mereceu muitas referências na época, quer em Portugal quer no Brasil.



A essa obra de recolha popular encontra-se na memória de Dona Inês e na da cultura brasileira, pois na portuguesa parece ter caído no esquecimento. Apresentamos de seguida duas referências recolhidas na revista Jangada Brasil.

Na Jangada Brasil n.º 9 Maio de 1999 pode ler-se:

“....

Oração contra a espinhela caída
Espinhela caída
Portas ao mar
Arcas, espinhelas
Em teu lugar
Assim como Cristo
Senhor nosso, andou
Pelo mundo, arcas
Espinhelas levantou
Todas as orações rimadas ou rítmicas, ensalmos tradicionais, de força sugestiva pelo emprego dos nomes sagrados ou sucessão de algarismos, ascendentes ou descendentes, são vindos de Portugal, diferenciados pelo mestiço brasileiro, o grande transformador, como notou Sílvio Romero. A espinhela caída é a moléstia incaracterizada pelo povo. Espinhela é o apêndice xifóide. O professor doutor Fernando São Paulo estudou magnificamente o assunto, evidenciando a confusão de síndroma; Linguagem popular médica no Brasil, I, 353-364, Rio de Janeiro, com abundante documentação. Em Portugal, entre outros, Jaime Lopes Dias, Etnografia da Beira, VII, 233, Espinha (coluna vertebral) encostada, Lisboa, 1948; Joaquim Roque, Rezas e benzeduras populares, etnografia alentejana, 13-17, Beja, 1946. A variante brasileira que o comandante A. Boiteux encontrou em Santa Catarina, Poranduba catarinense, 36:

Espinhela caída
Portas para o mar…
Arcas, espinhela
Em teu lugar…
Assim como Jesus Cristo
Pelo mundo andou
Arcas, espinhela
Levantou

...”

Da mesma forma na edição da revista Jangada Brasil, n.º 35 de Julho de 2001 recolhe-se esta interessante referência:

“...

Numa obra interessantíssima do professor Joaquim Roque que tivemos a súbita honra de prefaciar há um curioso capítulo a respeito de "Benzedura de olhados, fitos e fitados."

Pode ler-se neste livro: "Os olhados - segundo se crê - atacam com preferência e de preferência, as criancinhas de tenra idade... E logo solícitas as mãezinhas, para as livrarem de tão terrível moléstia, que em poucos dias lhes pode levar, correm a benzê-las contra os maus olhados, fitos e fitados, olhares de inveja, de lua etc. Como de costume, verifica-se primeiramente a existência da doença deitando alguns pingos de azeite num pires com água, sobre o qual se faz o sinal da cruz, ao mesmo tempo que rezam o credo (credo em cruz). Se o azeite desaparecer, diluindo-se completamente na água, a criança ou adulto, sofre de olhado:

Vamos citar um ensalmo curiosíssimo para tratamento do mau olhado. Não há má olhadura que resista a esta benzedura cheia de pitoresco:

Eu te benzo Fulano
de lua e d’olhado
de fito e fitado...
a lua, aqui’ passou
a cor de Fulano levou
e a del’aqui deixou
Quando aqui tornar a passar
A cor de Fulano deixará
e a dela levará...
Jesus é verbo
Verb'é Deus
S’é olhado
Benza-te Deus!
dois olhos t’olharam mal
três t’hão de olhar bem;
que é Deus Pai, Deus Filho,
Deus Espírito Santo Amém.
Fulano, se te dói a cabeça,
Valha-te Senhora Santa Teresa,
se te doem os olhos
Valha-te Senhora Santa Luzia!
se te dói o peito,
valha-te o Senhor dos Aflitos
se te doem os braços,
valha-te o Senhor Jesus dos Passos!
se te dói a cintura,
valha-te a Senhora Virgem Pura!
se te dói a barriga,
valha-te a Senhora Santa Margarida!
se te doem as pernas
valha-te o Senhor Santo Amora!
se te dói o corpo todo
valha-te o Senhor Todo Poderoso!
em louvor de Deus e da Virgem Maria,
Padre Nosso e Ave Maria.

Adeus mau olhado e sua má olhadura que te somes nas profundas do Inferno mal esta benzedura é pronunciada.

O povo acredita no poder mágico dos olhos, e crê piamente nesse fluido estranho.

Não é difícil encontrar-se frases bem características, que definem bem essa força invisível. "Quem tem olho é rei"! E assim é de fato. O homem, que tem grande visão das coisas domina o seu meio e comanda o seu semelhante. Fulano tem "olho vivo", sicrano tem "olho bem aberto".

Ouçamos uma benzedura recolhida pelo professor Joaquim Roque:

Jesus é verbo,
Verbo é Deus,
Fulano tem um quebranto,
Benza-o Deus.
Deus te benza, e benza-te Deus:
De lua e d’ar e d’olhadela;
De dores nervosas e de sol no miolo;
De lua nas tripas e d’azar;
E de mal d’inveja e de tod’o mal
Dois olhos te viram mal.
E três te viram bem;
E Deus Pai, Deus Filho,
E Deus Espírito Santo Amém
Em louvor de Deus e da Virgem Maria
Um Padre Nosso e uma Ave Maria.

A oração pode ser rezada três vezes fazendo cruzes sobre a água. Verificado o mal benze-se a criança rezando a oração nove vezes: Três enquanto se fazem cruzes sobre a cabeça, outras três sobre o peito e as restantes sobre as costas.

...“

Comments:
Olá prezado Victor,

mencionei o seu Blog no meu artigo hoje sobre espinhela caída.
Muito obrigado !
Ralf
 
Caro Ralf
É uma honra para esta modesta Oficina ser citada num importante artigo sobre a "espinhela caída". Sinto orgulho por ter sido amigo do Professor Joaquim Roque cuja obra etnográfica é citada.
Um abraço.
 
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