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domingo, outubro 22, 2006

recordar uma parceria

No Outono de 2003 dois olhares diferentes debruçaram-se sobre o mesmo tema. Vicktor, em Portugal e Deméter, no Brasil. Aqui recordamos o resultado desses olhares cúmplices:


Chuva de Outono

Cai a primeira chuva de Outono em Vale do Rosal. Chuva miudinha, persistente, a chamada “chuva de molha tolos”. O céu toda a manhã encoberto mas com muito de azul à mistura, torna-se cinzento, uniformemente cinzento, dando a sensação que nunca mais deixará de ser assim.

Do solo emana um forte odor a terra, odor que invade os pulmões e, curiosamente, chega ao coração, ou será ao cérebro?, onde vai despertar uma série de sentimentos de bem-estar e de força, força telúrica e criadora.

As aves mais jovens, muitas delas nunca viveram antes esta época do ano, ensaiam voos mais baixos na procura dos insectos que se encontram mais junto ao solo. Apresentam sinais de alguma desorientação, mas muito em breve se adaptarão às novas condições climatéricas e voltarão a dominar o espaço como antes.

Os dias também já são mais curtos. O Sol tem um pouco mais de preguiça em se levantar no horizonte nascente, mas os melros não alteram o seu relógio biológico. Noite escura já lançam os seus piares estridentes, comunicando com os seus semelhantes a hora da alvorada.

Do outro lado do Oceano, um olhar perdido, procura encontrar na primavera que inicia, indícios de fertilidade. A natureza parece estar em festa. O canto das cigarras se mistura ao ruído dos carros na rua. Não é uma disputa, mas elas conseguem cantar mais alto anunciando que é tempo de flores, de borboletas, de revoadas de periquitos.

Nesta época as chuvas não são constantes e, por mais incrível que possa parecer, na primavera faz mais calor que no verão. Também esta estação afasta os pássaros que buscam alimento no meio urbano durante o inverno. Alguns voltam para as matas próximas. Outros, aguardam a independência dos seus filhotes. Fizeram ninhos na cidade.

No ar o cheiro de flores toma conta do ambiente. A cidade se veste inteira de flamboyants e bougainvilles de coloridos vivos. Os canteiros das avenidas readquirem seu verde intenso e se enfeitam de sempre-vivas, margaridas, azaléias, campânulas, petúnias e flores típicas do cerrado. Um brinde aos olhos do caminhante desatento. Não é possível ignorar tanta beleza.

As manhãs são sempre barulhentas. Gorjeios de pássaros e cigarras começam muito cedo e, do outro lado da rua, um papagaio imita todos os sons que ouve. Enfim uma verdadeira alvorada festiva celebrando a vida, o renascimento, o Sol se levanta mais cedo para participar da alegria e sente uma dificuldade enorme de ir embora. O por do sol é uma explosão de cores colhidas durante o dia. Em cada praça, em meio a edifícios, há sempre um artista com pincéis ou câmaras querendo eternizar aquele momento.

Mas aquele olhar perdido...

Olhar perdido para lá do infinito de um planalto florido, das cores e dos odores tão esquisitos, que o alquimista dos sentires e dos quereres utiliza magistralmente para construir o amor.

Passados terras e mares, onde o olhar já não alcança, mas onde o pensamento e a imaginação do artista navega o sonho de tonalidades sépia com pinceladas de um verde esperança, voltamos à terra onde as “outonalidades” significam música, música intimista e tranquila.

No palácio, antes casa senhorial, e nos seus primórdios pavilhão de caça, os sons ecoam nos salões, sons de uma musicalidade ímpar, saídos de mãos sensíveis, esguias, ágeis que dedilham suavemente as teclas de um maravilhoso piano de cauda.

O artista queda-se tranquilo agora embalado por suaves sonoridades. E sonha... o seu sonho recorrente. Leve como uma ave, voa voa voa, sem limite e sem cansaço. Passa montes e vales por espaços amplos muito belos. O Mundo um dia será todo assim: doce, tranquilo, solidário.

Lá bem no alto, onde o firmamento é mais azul, o artista ficou na dúvida. Será Outono ou Primavera? Tonalidades de castanho com pinceladas de verde esperança, frutos secos e jeropiga em perfeita harmonia com esvoaçantes beija-flor de flor em flor, doirado sol e jarros de suco de manga, abacaxi e doce de goiaba.

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