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sexta-feira, maio 29, 2009

a carta

um conto de Liliana Miranda




Outra vez não conseguiu reunir palavras que traduzissem tudo que sentia. Mais uma vez manteve fria e branca a folha de papel. Desta vez se impacientou, sentiu alguma angústia, talvez fosse dor. Levantou-se. Precisava de ar. Precisava pensar e reorganizar as idéias. Precisava sentir o vento tocar-lhe o rosto, ouvir o barulho da arrebentação das ondas nas rochas e olhar o infinito por sobre o mar. Ficou assim por um longo tempo ate ser despertada pelos gritos do carteiro, um antigo conhecido, que chamava pelo seu nome e acenava-lhe em frente a sua casa. Era uma casa ampla, arejada, com um alpendre convidativo, ficava no alto de uma pequena montanha e a vista era fantástica. Naquela manhã, mesmo já tendo feito seu passeio diário na praia, sentia-se impaciente e outra vez sentiu vontade de descer e molhar seus pés. Virou-se, acenou para ele e foi ao seu encontro.

Lá estava uma carta. Não tinha sequer visto de quem era muito menos de onde vinha. Mas alguma coisa a fez tremer. Alguma coisa poderia mudar depois que ela lesse a carta. Ela sentia isso. Talvez o mar a tivesse segredado ao ouvido. Entrou. Colocou a carta em cima da mesa de trabalho e não ousou confirmar de quem era. Talvez tivesse algum receio ou talvez apenas precisasse tomar um chá bem quente, pois o vento lá fora estava frio. Era um chá de canela, seu preferido e como ainda faltavam algumas horas antes do almoço resolveu também comer algumas torradas.

Pegou a carta, sentia-se mais tranqüila, mais segura e aquecida. Era dele. Talvez ela até já soubesse disso, o mar lhe trouxe uma saudade distante. Não se viam há algum tempo e desde lá só uma ou duas cartas havia chegado, mesmo assim, apenas com noticias breves, como, aliás, também foram as suas respostas.

Sentia agora, diferente da época da despedida, que o tempo era necessário para compreender muitas coisas, inclusive a distancia entre eles. A carta havia sido escrita há duas semanas atrás e logo de início ela associou a data a sua recente dificuldade em escrever. Desde lá, havia escrito muito pouco e seu editor começava a pressionar. Seu último romance resultou em um sucesso muito grande e os leitores aguardavam certamente o próximo com mais ansiedade. Era assim que seu editor pensava.

Minha querida...

Eram estas as primeiras palavras. Ela parecia ouvir o tom da sua voz, o brilho dos seus olhos, talvez até sentisse o toque das suas mãos. Sentiu uma saudade tão grande que teve o impulso de parar de ler. Não podia se deixar levar por tamanha emoção já que vinha há dias tentando buscar algum equilíbrio e assim escrever com mais facilidade. Voltou a colocar a carta sobre a mesa. Acendeu um cigarro, fechou um pouco os olhos e não resistiu em segurar nas mãos a carta outra vez.

Há alguns dias tenho sonhado contigo, e nos sonhos sempre te vejo presa, sem conseguir se libertar por mais que se esforce. Ao final destes sonhos, a ultima coisa que vejo são os teus olhos. Eles me pedem algo, me dizem alguma coisa que eu não consigo compreender. Sinto-me impotente. Uma saudade enorme tomou conta de mim e sinto vontade de deixar tudo e seguir ao teu encontro.

_ Não. Eu não tenho que continuar a ler isto, pensou ela. Tinha lágrimas nos olhos e sentia seu coração bater num ritmo diferente. Com um leve tremor nas mãos deixou que a carta caísse no chão. Levantou-se e foi até a sua mesa de trabalho, sentou em frente à mesma folha de papel em branco. E num impulso inexplicável se iam soltando todos os sentimentos presos e as palavras começavam a brotar facilmente. Nascia ali seu novo livro e ela não parou de escrever durante um razoável tempo até que o livro estava quase no seu final.

Todas as manhãs fazia o seu habitual passeio na praia, olhava o mar com a mesma misteriosa curiosidade e admiração. Tomava um chá ou um café forte e se deixava entregar pela escrita, pelas emoções como se estivesse em transe.

Ana, uma mulher de seus 65 anos e pele muito clara, era sua companhia de todos os dias. Preparava-lhe as refeições, atendia os telefonemas, lhe ouvia atenta e com a sabedoria de quem já viveu alguns anos a mais lhe dava alguns conselhos. Ultimamente estava se sentindo mais feliz vendo que o ritmo de trabalho naquela casa voltava ao normal.

_ A senhora não quer um pouco de café forte? Acabei de fazer creme e sei que é assim o seu preferido. Então, que me diz?
_ Quero sim Ana, obrigada. Preciso mesmo parar um pouco. Há algo que precisa ser feito e há um tempo deixei pela metade, farei agora. Espero pelo café na varanda está bem?


Havia guardado a carta sem terminar de ler dentro de uma caixinha que permanecia sempre na mesa ao lado da sua cama. Pegou a carta e seguiu para a varanda. Olhou o mar, sentiu o vento e abriu a carta outra vez.

Mas eu sei que não pode ser assim. Sei, sobretudo, que me pediste para que eu me mantivesse distante, que precisavas pensar, precisavas compreender os meus, os teus e os nossos sentimentos. Respeito. E tenho mesmo que respeitar afinal fui eu que decidi ir embora.

Nós dois, temos, sempre tivemos, uma relação muito forte e muitas vezes conseguimos sentir alegrias e dores um do outro. Senti estes dias uma angustia que me apertava o peito, sentia que alguma coisa estava a te acontecer e te via paralisada. Sentia-te presa.

Não sei por que, mas eu não conseguia terminar esta carta, algo me impedia. Ontem, outra vez, sonhei contigo. Podia tocar as tuas mãos, sentia outra vez o perfume dos teus cabelos, a maciez da tua pele, o gosto da tua boca e tinhas olhos brilhantes que olhavam serenamente nos meus. Acomodei-te em meus braços, sentia-me em paz e então falei ao teu ouvido aquilo que irei repetir ao longo de toda a minha vida: Amo-te! Eternamente. Amo-te com toda a força que o meu coração é capaz de suportar.

Depois de ontem não tive duvida tudo parecia claro pra mim e não eras tu que estavas presa. Era a mim que via como se fosses tu. E percebi que mantinha minhas emoções presas em mim. Prendi a mim próprio tentando ocultar de mim a importância que tens na minha vida, achava que estava me protegendo. Estava enganado. Sei que me mostraste isso em nossos sonhos. Nossos encontros. Obrigado.
Ate breve, muito breve!


Quando lhe trouxe o café com creme e alguma torradas, a Ana pode perceber lágrimas em seus olhos, mas não havia em seu rosto nenhum sinal de tristeza. Talvez fosse apenas saudade. Talvez uma notícia esperada.

Tomou a xícara nas mãos, tomou o delicioso café com creme que a Ana sempre lhe fazia com esmero, comeu torradas e ainda trocaram algumas palavras sobre o tempo e sobre providencias de rotina a serem tomadas na casa.

Depois do café ela ainda permaneceu na varanda por um longo tempo olhando para o mar. A carta em suas mãos. Em seu rosto, além de felicidade, havia uma forte expressão de surpresa. Parecia tentar compreender algo.

Então leu suas ultimas palavras escritas:

Ele insistia em perguntar se ela o amava. Ele sabia que sim. Amavam-se profundamente e como todo sentimento profundo e forte, difícil de ser compreendido. Sentia-se confuso e inseguro, por isso partiu. Ela sabia que apesar de amarem-se precisavam compreender algumas coisas. Precisavam estar distantes, ainda precisavam continuar distantes.

A ela pareceu não haver mais nada a ser dito. Talvez apenas um ponto final. Mas, de repente acrescentou:

Quando ela terminou de ler a carta que havia chegado, sentiu uma enorme vontade de também correr ao encontro dele. Ela o amava tanto. Podia naquele momento ouvir a voz dele. Apesar da saudade estava feliz como se ele estivesse ao seu lado. Tinha um sorriso nos lábios.

Vestiu um casaco, lá fora o vento estava ainda mais forte e as ondas batiam nas rochas fazendo um grande barulho. Ela sentiu vontade de correr. Seus cabelos voavam com o vento e o perfume deles ficava no ar. Diminuiu os passos e percebeu que havia alguém mais adiante, o que não era comum naquela hora mas, devia ser alguém conhecido, sentiu-se tranqüila e continuou e viu que acenava-lhe. Seu coração parecia acelerar de repente e ela sem compreender o porquê repetia sem parar:
_ Até breve, muito breve!... Até breve, muito breve!...
Até estar completamente entregue nos braços dele e seus lábios silenciados nos dele.

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Comments:
As histórias de amor são sempre belas, estejam elas envoltas de felicidade, esperança ou, até mesmo, de tragédia!
 
Querida Milu

Concordo plenamente, mas penso sempre que "amor" é algo muito complexo... a amizade é amor! a paixão é amor! o muito querer é amor!

Amor... é muito mais do que uma palavra tão simples.

Beijinhos.
 
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