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quinta-feira, maio 03, 2007

pelas terras da mata real

minha terra é meu sentir
Caparica mais do que uma terra é um Povo. Gente que construiu vida entre o mar e a floresta em diversificado labor. Da sua vivência aqui se regista testemunho




...ou a história de um caixeiro-viajante


Nos finais da década de 50 do século passado, o meu pai tinha um negócio de drogaria, montado com porta aberta na Amadora, nos arredores de Lisboa, mesmo junto ao mercado e à estação dos caminhos de ferro.

Os empregados dos armazenista que forneciam o estabelecimento do meu pai deslocavam-se de terra em terra visitando os clientes para recolherem encomendas que, dias mais tarde, seriam entregues por transportes da empresa. Eram conhecidos à época por caixeiros-viajantes.

Os transportes individuais eram raros e as deslocações entre as diversas localidades difíceis. Recorriam aos transportes públicos pouco frequentes e a grandes caminhadas a pé. Vida árdua a dos caixeiros-viajantes que muitos dias pernoitavam em pensões de segunda categoria, tantas vezes somente regressando a casa nos fins-de-semana [1].

Recordo um desses caixeiros-viajantes, homem com gosto para contar histórias de vida, quantas vezes fantasiadas, que vivia para os lados de Foros de Amora, na Margem-Sul do Tejo e que tinha a sua área de trabalho nos arredores de Lisboa, onde se incluía a Amadora, ainda nesse tempo conhecida pela designação real de Porcalhota [2].

Após uma semana de trabalho o regresso a casa sempre desejado era, igualmente, atribulado, pelas dificuldades de transporte e em algumas circunstâncias a sua completa ausência. E nem sempre isento de riscos de assaltos e incómodos nesses caminhos ermos e difíceis.

De autocarro, da empresa de camionagem “Eduardo Jorge” que garantia as esporádicas ligações entre os arredores e a cidade de Lisboa, viajava até à estação fluvial de Belém, de onde partia um “ferry-boat” com destino a Porto Brandão e à Trafaria. [3]

Na Trafaria, uma carreira de camionetas com dois horários diários, uma pelo cedo da manhã e outro ao fim da tarde, garantia a ligação à então vila de Costa de Caparica, conhecida por Praia do Sol, ou um pouco mais além, até onde a estrada municipal o permitia.

A partir daí, no Inverno já com o breu da noite presente, era a caminhada a pé até aos Foros da Amora, por veredas e caminhos, quantos deles traçados pelo próprio passar das pessoas, na mata arbustiva, de tojos, carrascos e aroeiras, ou por entre o arvoredo denso de pinheiros mansos e bravos.

Aqui e além algumas zonas pantanosas e manchas de juncais são novos obstáculos ao avançar da andança, especialmente, em noites escuras quando a Lua faltava à chamada de iluminação natural tão útil nestas circunstâncias.

E ao caminhante nessas alturas vinha à memória as muitas histórias de medos e de temores quando passava nos cruzamentos onde se contava que havia encontros de bruxas e de lobisomens e de outros duendes da imaginação popular.

Caminhar a Subida das Vacas, com a certeza que mais além iria passar junto à casa do Guarda Florestal, era um esforço físico significativo, sempre a subir, mas feito com a tranquilidade da segurança dada pela presença perto de uma autoridade.

Daí para a frente era o caminhar solitário para atravessar o Pinhal da Aroeira e a Herdade da Apostiça no silêncio da noite somente interrompido pelo restolhar de uma raposa ou de um coelho bravo afugentados pela presença humana a horas tão tardias.

Era também o receio permanente de um mau encontro, pois era conhecido que aquela zona erma e de difícil acesso, ser lugar de acoitar ladrões e criminosos foragidos da justiça da capital, ali tão perto [4].

Contam os mais antigos que nessa época de antanho havia gente que possuía um salvo-conduto de “honra”, uma chamada “senha de boca” que lhe permitia atravessar incólume esta terra de ninguém.





Notas:

[1] – o chamado fim-de-semana no que tem de tempo de descanso nada tem a ver com o entendimento actual. O horário de trabalho do comércio era: de segunda a sexta-feira, das 9 às 13 horas e das 15 às 19 horas; ao sábado, das 9 às 13 horas e das 15 às 22 horas. Trabalhava-se então 51 horas semanais.
[2] – Designação real por lhe ter sido atribuída de forma depreciativa pelo Rei de Portugal, atendendo às condições de grande insalubridade que aí encontrou na sua passagem para o Palácio de Queluz. “Isto aqui é uma porcalhota!” terá afirmado.
[3] – A ligação por “ferry-boat” ou por “cacilheiro” era realizada entre Belém e Trafaria, com uma paragem em Porto Brandão para desembarque de passageiros e de alguns carros.
[4] – Na zona do Pinhal da Aroeira nasceu a partir dos finais dos anos 60 de século passado uma urbanização considerada, hoje em dia, a zona de maior crescimento demográfico da Freguesia de Charneca de Caparica, quiçá, do Concelho de Almada.

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