Partilhar
quinta-feira, agosto 16, 2007

o pinhal dos receios

minha terra é meu sentir
Caparica mais do que uma terra é um Povo. Gente que construiu vida entre o mar e a floresta em diversificado labor. Da sua vivência aqui se regista testemunho



O povoamento da Charneca de Caparica caracterizou-se sempre pela edificação de casas térreas, usando em geral como material de construção o adobe [1], que se desenvolvia linearmente junto à estrada municipal que vinda de Cacilhas, passava pelo Monte de Caparica, Vila Nova de Caparica e Lazarim, seguindo um traçado sinuoso como era uso na época.

Eram caminhos estreito por onde transitavam burros e cavalos de carga e alguns carros puxados por essas alimárias. Eram usadas mais pelos recoveiros [2] e gentes de posses, pois a população em geral fazia estas ligações de vários quilómetros a pé, seguindo por veredas e atalhos que o uso ia marcando por entre o mato e os pinhais.

Porque esta região era de “puros ares” e as terras de forte potencial agrícola, especialmente árvores de fruto e vinha, muitos foram os nobres que por dádiva real aqui construíram as suas quintas [3], de veraneio ou mesmo de residência principal, o mesmo acontecendo com algumas ordens religiosas [4] que consideravam estas terras vocacionadas para a oração e para a meditação.

Na Charneca de Caparica, para sul do Marco Cabaço, as terras eram arenosas e praticamente intransitáveis. A cobertura botânica era constituída por mato e outras plantas arbustivas, como seja a aroeira que deu nome à zona, por pinheiros bravos e mansos e por amplas zonas de juncal. Aqui e ali despontavam medronheiros [5], cujos frutos deliciavam os passantes.

Esta zona era praticamente inabitada, sendo muito poucas as pessoas com coragem para entrar em zona tão erma, sobre a qual se contavam histórias ou lendas de maus encontros, de lobisomens que apareciam em noites de lua cheia nos cruzamentos [6] ou mesmo de foragidos da lei que aqui se acoitavam protegidos pelo denso matagal.

Contudo, quem se atrevesse a percorrer o pinhal na calada da noite, apercebia-se, aqui e ali, o tremelicar de uma luz, normalmente candeia de azeite ou de petróleo, vinda de algum barraco construído na mata e onde viviam as famílias menos abastadas, muito abaixo do limiar da pobreza. As gentes da Charneca de Caparica conheciam-nos por “toupeiras” [7] pois à aproximação de estranhos fechavam-se dentro de casa e não se deixavam ver.

A Mata dos Medos [8], também conhecida por Pinhal do Rei, o plantio de pinheiros teria sido mandado fazer pelo Rei D. João V, por forma a “segurar” as areias em movimento, era lugar de difícil acessibilidade onde se acoitavam bandidos e outros foragidos da lei. A própria Guarda tinha dificuldade em entrar nas zonas mais recônditas do pinhal.

Esta mancha verde, autêntico pulmão com que a Natureza brindara a Margem Sul do Tejo, prolongava-se para lá da Lagoa de Albufeira, na direcção de Sesimbra e do Cabo Espichel, conhecido pelos antigos como Promontório Barbárico, pelas Herdades da Aroeira e da Apostiça. Para poente chegava ao areal, à época de enorme extensão e de altaneira linha dunar.

Contam os mais antigos que depois do pôr-do-sol somente entrariam no Pinhal do Rei aqueles que, pela confiança que neles tinham os foragidos, possuíssem o chamado “salvo conduto de palavra” [9], código de “honra”, senha e contra-senha que deveria ser dita a quem interpelasse os forasteiros.

Também havia um dia determinado da semana, a terça-feira, em que era permitido ao Povo, a viver em profunda penúria, colher lenha da mata nacional, lenha seca sem magoar os pinheiros, para ser utilizada para as lareiras e para o “fogo de cozinhar”. Famílias inteiras reservavam esse dia para a recolha de lenha, pois o excedente às suas necessidades de utilização sempre representava com a sua venda uns centavos adicionais para o magro orçamento familiar.

No tempo das pinhas, aproveitava o Povo esse dia para colher pinhas que, vendidas para Almada ou para Lisboa, e mesmo nas quintas da região representavam um acréscimo aos seus parcos rendimentos. Somente estavam autorizados a recolher pinhas secas, mas de forma furtiva sempre recolhiam pinhas de pinheiro manso, pois os pinhões já eram, nessa época, pagos a bom preço.




Notas


[1] – Massa de barro, muitas vezes misturada com palha, que depois de seca ao sol, especialmente no formato dos actuais tijolos, era utilizada como material de construção.

[2] – Os recoveiros, ou almocreves, eram peças fundamentais no comércio e transporte de mercadorias, alugavam ou trabalhavam com animais de carga.

[3] – No território que constitui hoje a Charneca de Caparica e no seu termo poderemos encontrar, entre outras, Quinta e Solar de S. Macário, Quinta da Regateira, Quinta de Monserrate, Quinta de Cima, Quinta da Carcereira.

[4] – De acordo com o Dicionário Geográfico escrito pelo padre Luís Cardoso existiram três conventos no termo de Caparica: o Convento dos Religiosos de S. Paulo, e que é orago N. S. da Rosa, fundado em 1410; o Convento dos Religiosos Arrabidos, dedicado a N. S. da Piedade, fundado no ano de 1558; e o Convento dos Religiosos Agostinhos Descalços, de que é padroeira N. S. da Assunção, fundado no ano de 1677.

[5] Ainda hoje fazem parte da mancha arbustiva, sendo um aliciante para quem caminha na mata em tempo de maturação dos frutos, os medronhos.

[6] – Hábito que se não perdeu, antes intensificou com a chegada de muitos imigrantes brasileiros, a prática de macumba deixa evidências para quem percorre a mata pelas manhãs: garrafas de bebidas alcoólica, velas vermelhas e muitos outros elementos característicos da prática de tais ritos.

[7] – Contam os mais antigos da existência de um clube “Os Toupeiras” que realizavam bailes frequentados pelas gentes do lado sul da Charneca de Caparica e por quem vivia em casebres no interior da mata. Quando se chegavam rapazes vindos de Palhais ou do Botequim eram frequentes grandes cenas de pancadaria.

[8] – A designação de Mata dos Medos tem origem no facto de parte da mesma se encontrar implantada em grandes elevações de terreno arenoso junto ao litoral conhecidas por “medo” ou “médão”.

[9] – O “santo e senha” que ainda há pouco uma senhora de Sobreda me referiu que o pai havia sido detentor para poder entrar na Mata dos Medos.

Etiquetas:


Comments:
Passado e presente contado por quem sabe.

Gostei de recordar algo e de conhecer outro tanto.

Obrigado
 
Amigo Repórter
Este é mais um projecto em marcha... Contos do Pinhal.
Um abraço.
 
Tanto do aqui ensina. Muito do que aprendo foi do ouvir contar.
Como é bom recordá-lo de si.

Um beijo, Querido Victor
 
Querida Gasolina
É bom saber o que sentes quando l~es estas minhas singelas palavritas.
Beijinhos grande.
 
COmo viajo,nas sua palavras saboreando histórias!
LIgia
 
Querida Lígia
Grato por me acompanhar nestas viagens que tante me encantam.
Beijinhos.
 
Enviar um comentário



<< Home

This page is powered by Blogger. Isn't yours?