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terça-feira, outubro 14, 2008

mariscar conquilhas

Herdara de seu pai este gosto de mariscar, arrastar o ancinho à custa de muito esforço dos braços e das costas, por forma a que as conquilhas “caíssem” para o saco de rede de pesca de onde não sairiam, enquanto a areia fina se escapava levada pelo refluxo da onda.

Mas era coisa de antepassados, pois também o pai de seu pai e outros homens mais antigos da beira-mar, usando apetrechos que eles próprios construíam, retiravam do mar os deliciosos bivalves que vendiam para as tascas da terra, hoje em dia para restaurantes afamados.

Mas se ir à praia mariscar é herança de família, já o saber, como e quando, é fruto da aprendizagem da vida, dos tempos passados nesta labuta, a cada dia com os seus ensinamentos, aprendendo com as desilusões, tantas vezes à conversa com o mar azul e verde, em confidências e desabafos.

Naquela noite o ti Jaquim da Eira, sabe-se lá se próprio nome ou alcunha, ou alcunha de antepassado transformada em nome, na certeza de que havia aqui um forte laço entre as gentes dos campos e as das maresias, procurou ler com a dificuldade da letra miudinha e da parca iluminação o livrinho das marés. Noutros tempos, livrinho para informação dos pescadores, hoje mais voltado para os interesses dos surfistas.

Pela hora da maré vaza do dia seguinte e pela altura das ondas ficou a saber que se queria que a apanha da conquilha lhe fosse favorável teria que madrugar e fazer-se ao caminho antes do sol nascer, Descida das Vacas abaixo na ida até ao Grande Areal. Gostava de “arrastar” entre as praias do Infante e da Nova Vaga ou então para lá da Bela Vista.

Dormiu pouco nessa noite. Mal tinha caído no primeiro sono, o mais profundo, e já labutava com o arrasto que lhe parecia mais pesado do que nunca. Arrastava, arrastava sem parar até já lhe doerem as cruzes e o peso era cada vez maior. No lugar das conquilhas que iria vender ao restaurante habitual o saco de rede estava cheio de pepitas doiradas. Os fenícios e romanos bem razão tinham em procurar áureos filões em terras da Adiça. Seis horas da matina, hora de se fazer ao caminho.

Equipou-se a preceito que a água estava com certeza gelada e teria que passar algumas horas com as pernas nela mergulhadas. Camisola de lã grossa obra de noites de trabalho da sua companheira, calças de oleado amarelo e casacão do mesmo material. As botas de borracha de cano alto, as galochas, levá-las-ia penduradas ao ombro e somente as calçaria chegado ao areal, pois não era muito prático de as levar calçadas pois ia levar a bicicleta que lhe facilitaria a deslocação. Na cabeça gorro posto que o protegeria do frio e, mais tarde, quando o sol levantasse, do calor.

Foi rápida a deslocação, caminho sempre a descer até à praia. Mais logo no regresso seria mais difícil. Em algum pedaço do percurso teria que ser ele próprio a ajudar a bicicleta, pois as pernas já não tinham força para tanto e a subida de regresso ao povoado muito íngreme.

Chegado ao Grande Areal o ti Jaquim, o ti Jaquim da Eira, deitou a bicicleta na areia, longe de onde a maré cheia iria chegar e calçou as galochas. Bem protegido contra a frieza das águas, antes de começar a labuta olhou em seu redor e não viu vivalma. O sol ainda não surgira sequer no topo da arriba fóssil.

Arrasto após arrasto, dentro do saco de rede do aparelho iam sobrando alguns bivalves à mistura com muita escória de conchas partidas pelo bater das ondas. Deixou-se ficar no arrasto com a água um pouco mais abaixo do joelho, onde ainda era fácil caminhar e os dentes do ancinho não encontravam muita resistência da areia.

Com o lento encher da maré também o ti Jaquim ia recuando no areal, mantendo a água à mesma altura na perna, embora por vezes uma onda mais forte batesse ríspida deixando a espuma branca a bailar a seus pés.

Quando o saco já pesava na direcção da areia retirou-o do mar deixando que se escapasse pela malha de rede a água, a areia e alguns pedaços mais pequenos das conchas partidas. Depois junto à bicicleta caída na areia sentou-se na escolha das conquilhas pondo para o lado todos os restos de conchas. As escolhidas foram colocadas dentro de um recipiente com água do mar para assim se conservarem vivas.

E lá voltou o ti Jaquim de novo para o arrasto, lento e cada vez mais doloroso que as costas de ancião já não tinham a resistência de antigamente. Por duas ou três vezes repetiu a escolha das conquilhas e o regresso ao arrasto.

Já o sol levantava vindo do cimo da arriba fóssil que refulgia em tons doirados quando o ti Jaquim deu por terminada a sua matinal tarefa. Reparou, então, na tranquilidade da manhã, nas dezenas de gaivotas que o rodeavam, quase o considerando “um dos seus”. O velho ancião de cabelos esbranquiçados que ao reflexo do astro-rei pareciam prata sorriu.

O regresso iria ser penoso, depois de percorrer algumas centenas de metros em terra batida esperava-o um íngreme declive onde a ajuda da bicicleta iria ser nula. Teria de ser ele a ajudar a bicicleta.

Consigo levava a esperança de juntar aos seus magros rendimentos dos trabalhos do campo mais algum dinheiro fruto da venda das conquilhas ao restaurante do costume.

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