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terça-feira, abril 14, 2009

josé franco, o barrista

Já passaram quase quatro dezenas de anos desde que eu, timidamente, entrei pela primeira vez na oficina de oleiro de José Franco a convite de um amigo, seu vizinho na então aldeia do Sobreiro, ali para as bandas da Ericeira. A minha timidez era devida ao respeito que a obra de José Franco já me merecia do conhecimento que dela ia tendo.

Um sorriso aberto foi a resposta à apresentação, parando momentaneamente a tarefa de acariciar o barro que lhe tomava mais de doze horas por dia, para logo continuar. Lá me foi dizendo: “_Vai tomar aqui uma ginjinha que é de estalo... foi feita por mim”. Esse dia foi totalmente passado no que era então o embrião da hoje muito turística “Aldeia Saloia” de José Franco. Ainda recordo no palato o sabor de umas divinais iscas de porco frigidas em banha, manteiga de porco rosada como então se dizia, preparadas com arte pela irmã do oleiro para o nosso almoço.

Conversamos primaveras a fio naquele passar de tempo despreocupado onde amizades se sedimentam para a vida. Um dia fui surpreendido com uma pergunta do oleiro José Franco: “_... e o amigo qual é o seu trabalho?”. Não foi fácil a resposta sobre uma actividade que era emergente em Portugal, a informática que sucedia à mecanografia.

Deu-se por satisfeito o artista quando me disse: “_Quero fazer uma peça que signifique o seu trabalho para lhe oferecer em Abril”. Nesse glorioso mês, decorria o ano de 1977, aquando da realização do Mercado de Abril, mostra de artesanato durante anos vivida à beira do rio Tejo, lá esperava por mim, o Alfarrabista.


o Alfarrabista, de José Franco, anos de 1976-77


Milhares de peças de olaria saíram da magia das mãos de José Franco. Com grande pendor religioso era esta a temática preferida do artista que nunca perdeu, contudo, a sua simplicidade e o sentir da sua origem no Povo. Foi idolatrado por figuras de vulto, uma forte amizade ligava-o ao escritor Jorge Amado que sempre que vinha a Portugal o visitava e com ele tomava uma ginjinha.

Ano após ano fazia crescer a sua “Aldeia Saloia”, miniaturas com movimento produzido pela água corrente, imagens da vida rural da região saloia. A religiosidade sempre presente não impedia alguns devaneios artísticos de cariz pagão, como este “burro a partir a loiça toda” que não tendo passado de um “ensaio” é uma peça única que um dia o mestre oleiro me ofereceu.


“burro a partir a loiça na própria olaria”, de José Franco, anos 80 do século XX

A última vez que me encontrei com José Franco decorria o ano de 2002, no mês de Setembro, e lá o fui encontrar nos seus 80 anos de idade a dar vida a mais uma das suas incomparáveis figuras. Pouco tempo depois, nas voltas que a vida dá, foi obrigado (só o poderia ter sido) a afastar-se do seu mundo, da sua oficina de oleiro, sendo “internado” num lar para idosos em Mafra.

José Franco na sua oficina de oleiro, Setembro de 2002


Muito recentemente escrevi sobre José Franco lavrando o meu desagrado por uma inconcebível troca de autoria de peças religiosas criadas pelo artista e expostas no museu da Igreja de S. Vicente de Fora: “Já na parte final do século XX encontrámos uma vitrina onde estão expostas duas peças atribuídas a Francisco Franco, quando na verdade são obras incomparáveis do barrista de excepção que é José Franco. Tivemos oportunidade de alertar para o facto quem de direito, esperando que muito em breve seja reposta a verdade da autoria dessas duas excelentes peças de olaria de cariz religioso. É incomparável a marca do barrista José Franco, a minúscula florinha branca.”





José Franco, oleiro e barrista de excepção faleceu hoje no Hospital de Santa Maria
JOSÉ FRANCO continua vivo na Oficina das Ideias

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Comments:
É com grande tristeza que tomo conhecimento da morte de José Franco. Quantas vezes passei na sua aldeia saloia só para o ver moldar o barro e fazer nascer das suas mãos obras de uma excepcional beleza.Muito afável era este grande barrista!
Jamais será esquecido! Assim o saibam fazer os homens que tanto o apreciaram.

Bem-hajas, amigo!

Beijinhos
 
Querida Isamar
Homem de grande valor artístico e humano continuou simples e afável até ao fim da sua vida... estou avontade para escrever agora pois foi algo que sempre em vida lhe transmiti.
Beijinhos.
 
Um bonita evocação!
:))
 
Céus, não soube do falecimento.
Quando era menina, meus familiares levavam-me até lá para passar o dia, e eu acabava sempre fugindo deles para ver o mestre trabalhar..
A sequência do "burro a quebrar a loiça", lembro-me que eram uma série de burros com várias características... a minha mãe, por ter sido professora, ficou com um carregadinho de livros :-)hoje sou eu que o tenho.
Tenho muita pena mesmo...ficámos mais pobres realmente. muito mais...
 
Querida MdSol
Obrigado pelas tuas palavras mas sinto que não consegui escrever tudo o que o José Franco merece.
Beijinhos.
 
Querida Sara
Memórias da nossa meninice que são uma grande homenagem a José Franco... é bom saber que uma peça desse extraordinário oleiro está acolhida nas tuas mãos.
Beijinhos.
 
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