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terça-feira, julho 28, 2009

o vendedor de alfaias

Chega sempre ao nascer da aurora, quando os primeiros raios de sol aclaram o firmamento lá para os lados da Azoia, a horas em que o amplo arraial ainda se encontra sem viva alma.

Estaciona a velha carrinha, cansada de tanto andar para aqui e para ali, a chapa carcomida pela exposição continuada às intempéries, no local habitual, um ponto onde se cruzam as linha imaginárias que ligam a entrada do Santuário ao mar e a Capela da memória à torre de farol.

Recorda-se que sempre foi esse o local escolhido para instalar a sua venda domingueira, tal como o fazia seu pai e, se a memória não o atraiçoa, o próprio avô paterno.

A razão da escolha deste local não tem não a tem na sua memória. Sempre assim foi, é o hábito, a tradição, um costume enraizado que não ousa, sequer, questionar, quanto mais alterar.

Para a venda leva cópias de antigas alfaias agrícolas construídas em madeira, arados, malhos e pás de eirar, gadanhas, gradadoras... Algumas das peças são quase em tamanho real, muito embora a maior procura seja para aquelas que reduzidas à escala vão servir mais para decoração do que para utilidade. Mas, o que mais vende são as miniaturas colocadas em artefactos e que irão servir como porta-chaves.

Quando os visitantes começam a chegar ao Cabo, em grupos excursionistas ou em carros próprios que em pouco tempo saturam os estacionamentos, já os artigos estão expostos em enormes mantas de trapinho que se houver comprador interessado também elas mudam de mão.

Nessa altura a fazer-lhe companhia já estão as bancas de conchas do mar, na maioria vindas da Indonésia e do Suriname, as “roulottes” dos cachorros quentes e das farturas, e até o vendedor das queijadas de Sintra, que da Caçapa já não são.

Está montado o arraial, a festa está animada, a tradição de visitar o Cabo Espichel, onde o mar da costa portuguesa é mais perigoso, e o Santuário da Senhora do Cabo, ou da Pedra Mu, onde a lenda diz terem-se encontrado “o velho de Alcabideche e a velha da Caparica”, mantém-se, perdida para muitos a memória da razão de ser da peregrinação que para esses lados se realizava.

Também o vendedor de artesanato das alfaias agrícolas que todos os domingos se desloca ao cabo Espichel em negócio perdeu a memória da origem da ida dos seus antepassados com essa mesma venda. Como refere o Professor Victor Manuel Adrião, em “O Giro do Círio dos Saloios”, no final dos três dias do Círio ao Santuário de Nossa Senhora do Cabo “...sucedia-se a entrega das alfaias, lavrando-se acta do sucedido, assinada por todos os presentes”.

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Comments:
Também já fui várias vezes ao Cabo Espichel e por vezes o vento mete medo:)

Falas do artesanato, das "conchas vindas da Indónesia e não só" e fico sempre triste pela enorme falta de imaginação na apresentação de artesanato tipicamente da zona e só da zona como encontro lá por fora!
Sintra o que tem? podiam fazer por exemplo um porta chaves com uma queijada típica, há azulejos mas podiam haver mais com outras decorações não menos tipicas...enfim!

Realmente os feirantes sofrem imenso no seu trabalho bem duro e gostei desta história de "o vendedor de alfaias"!

Beijos

Fatyly (desactivada heheheh)
 
Mais um texto daqueles em que a partilha do conhecimento me deixou mais enriquecida. Conheço o Cabo Espichel mas nunca lá fui ao fim de semana e, por conseguinte, não tive a sorte de conhecer este vendedor nem muitos outros.

Bem-hajas, amigo!

Beijinos
 
Querida Fatyly

O Cabo Espichel por alguma razão era conhecido pelos antigos como Promentório Barbárico...

O vento e o temporal metem respeito no Cabo Espichel... mas tornaõ ainda mais belo.

Eu como já te deves ter apercebido sou igualmente um defensor do artesanato tradicional português e pelo nosso património imaterial...

Sintra? Encanta-me a Vila e a Serra (como diz um conhecido comunicador "já fui muito feliz em Sintra", no Penedo, em Almoçageme, na Adraga, em Colares.... aiiiii!) e concordo que merecia um tratamento melhor sobre a sua tradição...

Beijinhos.
 
Querida Isamar

Também eu viajo muitas vezes para o Cabo Espiche. Tem sobre mim um efeito extraordinário de algo que se sente e se não explica.

Um dia encontrei este tal "vendedor de alfaias" com quem mantive uma longa conversação. Depois comparei com leituras que antes havia feito aquando de uma pesquisa sobre os "Círios à Nª Sª do Cabo" e resultou este texto.

Fruto, ogualmente, da minha aprendizagem que depois só pode ter um caminho: a partilha.

Beijinhos.
 
Muito bom ouvir e aprender sobre lugares tão distantes que vao se tornando mais proximos a medida que voce esplana. Alfaias é um termo meio incomum,são enfeites e adornos vendidos nas feiras, nao é Vicktor?
Obrigado por partilhar comigo.
Voltarei sempre.
 
Querida Lis

Gosto muito de viajar pelo nosso Portugal e conhecer todas estas pequenas estórias.

O termo "alfaia", ele próprio a cair em desuso em Portugal atendendo ao desenvolvimento tecnológico, significa um conjunto de instrumentos, normalmente construídos em madeira e em ferro, utilizados nas tarefas agrícolas.

Os arados, as gradadoras, as debulhadoras e tantos outros, cada um com a sua utilidade. Normalmente movimentados pela força do homem ou dos animais de trabalho.

Beijinhos.
 
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