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domingo, novembro 01, 2009

o “pão por deus”

As nossas crianças, os meus netos, os miúdos da cidade nunca conheceram a magia do "pão por Deus" que fazia andar bandos de crianças no dia 1 de Novembro, dia de Todos os Santos, de porta em porta, de vizinho em vizinho, pedindo figos, nozes e outras guloseimas.

_Ó Vizinha, dê o “Pão por Deus”!

O consumo desenfreado e a globalização económica geram o esquecimento das coisas simples e da nossa tradição. Mas valerá sempre a pena, apesar de tudo, pedir o “pão por Deus” numa cabeça de abóbora ou num chapéu de bruxa.

Mas na tradição portuguesa o “pão por Deus” era guardado num saquinho de pano que tempos antes a nossa mão ou a nossa avó preparavam com todo o cuidado com uma sobra de chita de algum trabalho de costura.

Ainda hoje nas aldeias mais recônditas, de manhã bem cedinho, no dia de Todos os Santos, as crianças saem à rua em pequenos grupos para pedir o "Pão por Deus". Caminham assim por toda a povoação e ao fim da manhã voltam a casa com os sacos de pano cheios de romãs, maçãs, bolachas, rebuçados, castanhas, nozes e, por vezes, até dinheiro.

Esta prática era realizada por miúdos de famílias mais modestas e procuravam sempre visitar os mais ricos da terra para poderem trazer algumas guloseimas que noutras épocas do ano nunca conseguiam obter. Recordo-me que havia o costume de confeccionar para oferecer nesta época uns bolos em formato de ferradura e com um agradável sabor a erva-doce.

Estas andanças de porta em porta eram sempre acompanhadas com cantilenas que continuam na memória colectiva

"Pão por Deus,
Fiel de Deus,
Bolinho no saco,
Andai com Deus."

Ou então, como me recordou a minha boa amiga Sonyah:

"Bolinhos e bolinhós
Para mim e para vós
Para dar aos finados
Qu'estão mortos, enterrados
À porta daquela cruz


Truz! Truz! Truz!
A senhora que está lá dentro
Assentada num banquinho
Faz favor de s'alevantar
P´ra vir dar um tostãozinho."

(quando os donos da casa dão alguma coisa, vem a resposta...)
"Esta casa cheira a broa
Aqui mora gente boa.
Esta casa cheira a vinho
Aqui mora algum santinho."

(quando os donos da casa não dão nada, é a ira da miudagem...)
"Esta casa cheira a alho
Aqui mora um espantalho
Esta casa cheira a unto
Aqui mora algum defunto."


A propósito do "Pão por Deus" recebi um interessante comentário, que é experiência de vida vivida, da minha querida amiga Milu, do blogue Miluzinha - Blog, que tomo a liberdade de aqui transcrever trazendo-o para a ribalta da Oficina das Ideias:

"Em criança comecei a ir ao pão por deus logo no meu primeiro ano de escola. Eu adorava esse dia, pelas coisas que me davam e pelo convívio com outros miúdos da minha idade. Pedir pão por deus em grupo era muito divertido, mas tudo tem o seu segredo: Quando nos dirigíamos a uma casa fraccionávamos o grupo, porque quanto menos formos, mais nos dão, ou seja, há a tendência das pessoas para diminuir a oferta a cada criança perante um grupo grande.


Algumas vezes aconteceu-me bater à porta de uma pessoa que me atendeu um pouco desiludida, por ter tido a preocupação de preparar o pão por deus para dar à criançada e, afinal, ainda ninguém lá tinha ido! Claro que nestas circunstâncias quem ganhava era eu! Quando assim era, ficava tão contente que até os meus sapatos ganhavam molas.


Passávamos a informação uns aos outros de quais eram as casas que davam e quanto davam, enfim, era um dia em cheio para a miudagem. Quando o meu filho era pequenino fui eu que o incitei a ir bater à porta dos vizinhos, comigo sempre a vigiá-lo, tinha de ser. No fundo pretendi que ele experimentasse a mesma alegria e satisfação que eu mesma senti, quando também eu pedi pão por deus.


Deleitava-me toda a ver-lhe os olhitos brilhantes, ainda de chupeta, com a baba a escorrer pelo queixo, devido à forma como segurava a chupeta e a olhar para dentro da saca onde abundavam os rebuçados e chupas de todas as cores e sabores. Tempos! Tempos que já lá vão!"

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Comments:
Olá!

Vim aqui fazer a minha visitinha costumeira e zás, deparei com o comentário por mim feito! Obrigada Vicktor pelo teu gesto, porque para mim é uma honra figurar no Oficina das Ideias. Já agora deixo aqui mais umas achegas: Quando me calhou pedir pão por deus em casas que ainda não tinham sido visitadas pelas crianças, já eu ia na segunda ou terceira investida, é que eu passava o dia a juntar e a acartar para casa! As oportunidades devem de ser aproveitadas, ora essa. Como o dia já ia adiantado, as pessoas cuidando que já não teriam oportunidade de contemplar qualquer outra criança, estendiam o cesto na minha direcção ao mesmo tempo que me diziam para tirar o que quisesse. Olha o que me haviam dito! Nem era preciso repetir! Sem me fazer rogada toca de lançar mão daquilo que mais me fazia luzir o olho, afinal, se assim não fizesse até podia parecer mal, porque iria parecer que estava a fazer-me esquisita! :D
Normalmente andava acompanhada por crianças minhas vizinhas e colegas de escola. Éramos todos pobres, muito embora, uns menos do que outros. As crianças filhas de ricos ou com fama disso, ou com alguma proeminência social, não andavam ao pão por deus por várias razões. Algumas delas por uma questão de se julgarem superiores, não se misturavam com a "ralé", outras, era pelo facto de os pais recearem que lhes acontecesse algum mal, porque a verdade seja dita, por vezes atravessávamos as estradas em grupo e um pouco à toa. Quando foi com o meu filho também me preocupava bastante, só depois de lhe encher os ouvidos com recomendações o deixava ir acompanhado de outros miúdos alguns deles já bem crescidos, para olharem por ele, pareciam um bando de pardalitos a chilrearem alegremente pelas ruas.
Um beijo.
 
Hum...perfeita postagem.



abraços

Hugo
 
Ora aí está como uma tradição bonita é substituída pela importação de um dia que nada tem a ver com os nossos costumes!
Mais uma cedência à comercialite aguda que nos destrói.
 
Gostei muito e também nao conhecia esse termo "pão por deus". Tradição gostosa que as crianças deviam mesmo adorar.
Pena que como disse mfc , eu emdosso as palavras dele ,perdemos nosso elo qundo começamos a esquecer nossos costumes.
Abraços e nos vemos na semana.
 
Gostei muito do comentário da Milu que virou post. É uma partilha lindissima, lá está, uma vivência que não tive, já que em Angola não havia o "pão por Deus" e só cá é que conheci e as filhas também participavam sempre no "bando de pardais".
As minhas netas também já participaram nessa tradição, que aquela aldeia lindissima onde vivem ainda a conserva.
 
Na verdade faço parte do grupo de pessoas que não conheceu essa magia, adoro ouvir falar destas e doutras equivalentes e sinto-me sempre atraida para o espaço da Milú, uma pessoa que apesar de ser da minha geração conta factos e vivências (e com tanto encanto) que nunca pensei exixtirem. Gostei do post...aprecio muito a Milu.
Bjs
 
Quando eu era menina, o dia de "pão por Deus", era um dia especial. O dia em que ganhávamos guloseimas que nem no Natal tínhamos. Quando cresci e casei, sempre me preocupava em comprar para esse dia alguns doces e certas frutas para dar às crianças.
Depois nunca mais vi as crianças pedirem o "pão por Deus" até este ano em que um grupo de 5 crianças me tocou a campainha no dia 1 a pedir o "pão por Deus".
Confesso que fiquei tão contente.
É que a história das bruxas não me diz nada e acho que não tem nada a ver com a nossa tradição.
Um abraço
 
Adorei conhecer esta história, tão esquecida nos dias de hoje. De facto, se existem tradições que deviam ser mantidas, esta seria uma delas por tudo o que encerra. Este ano, na minha cidade tive meninos a pedir o "pão por Deus" e com um sorriso nos lábios que os recebi e foi com um sorriso nos lábios que li este teu testemunho. Bjs
 
Antes de mais quero agradecer às pessoas que aqui fizeram comentários tão simpáticos acerca das minhas histórias, que são as minhas recordações.

Afinal, sempre tenho razão: A Elvira exultou com a visita das 5 crianças, que lhe pediram pão por deus. Acerca deste tema muito haveria para contar. E as caras surpreendidas que os miúdos fazem quando lhes dão uma boa oferta? Passados uns curtos instantes temos a casa invadida, foram eles a dizer aos outros. E quando a oferta é fraca? As expressões do rosto não deixam dúvidas, o desalento até mete dó! :D
 
Querida Milu

Foi atrevimento meu ter reproduzido um texto-comentário que havias feito, mas achei-o tão interessante que o quis trazer para a ribalta da Oficina.

Aliás também este teu comentário é muito enriquecedor. Obrigado.

Beijinhos.
 
Caro Hugo

Muito garto pelo teu comentário.

Um abraço.
 
Amigo Manuel

Tens toda a razão... mas deveremos lutar para que tal não aconteça.

A cultura popular portuguesa é riquíssima.

Um abraço.
 
Querida Lis

Como dizia o poeta "hei-de defender a nossa tradição até que a voz me doa".

Beijinhos.
 
Querida Fatyly

Uma das vantagens das aldeias em relação às grandes urbes é essa: viverem intensamente todas as relações de vizinhança e manterem vivas as tradições.

Beijinhos.
 
Querida Lilá(s)

Subscrevo totalmente as tuas referências à Milu e ao seu bonito blogue.

Um beijinho.
 
Querida Elvira

Na verdade ainda se vive, em algumas regiões, intensamente o "pão por Deus" e é um encantamento ver ranchadas de meninos a darem continuidade à tradição.

Beijinhos.
 
Querida Sara

É a solidariedade e a amizade entre vizinhos, que infelizmente a massificação das grandes urbes leva a perder.

Foi bom teres sentido esses sorrisos...

Beijinhos.
 
Querida Milu

Elogios totalmente merecidos... e claro que tens razão, a razão da vida vivida e sentida.

Obrigado.

Beijinhos.
 
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